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ARTIGO | UMA ALA PARA O LUTO
01/05/2021 09:30 em ARTIGO

Nunca ouvi ninguém dizer que não gostaria de ser velado quando morresse. Não que não haja pessoas com esse desejo derradeiro, mas a grande maioria das pessoas provavelmente gostaria de ser lembrada na forma de ato fúnebre. Até aqueles que dizem que não (nunca vi, mas por certo há) devem fazer isso torcendo para que o contrário aconteça. Pedir para não ser lembrado é um grito para não cair no esquecimento.  

É mais comum ouvirmos pessoas manifestarem que desejam um velório para si nada convencional e fora das tradições. No fundo, todos gostaríamos de saber como foi nossa despedida, quem esteve presente, quem chorou, o que foi falado a nosso respeito, entre outras tantas coisas. Gostaríamos de ser lembrados pelos nossos melhores momentos. Na verdade, sempre planejamos nosso velório como se ali estivéssemos vivos, como se fôssemos espectadores de nossa própria cerimônia. Talvez muitos nem ousam pensar sobre isso, pois a finitude nos aterroriza e imaginar um adeus solitário pode triplicar o pavor. 

É por isso que tanto quanto o aumento de leitos em UTI’s acho que teria sido (e ainda é) muito importante que tivéssemos pensado numa forma segura e viável das famílias fazerem uma cerimônia de despedida do seu ente que morreu de COVID-19. A meu ver, isso é tão importante quanto tratar aqueles que estão enfermos. Se os profissionais de saúde conseguem entrar nos quartos de quem está em tratamento, e a doença tem determinado período de alto risco para contaminação de terceiros, por que não seria viável uns poucos familiares estarem por algumas poucas horas a se despedir daquele amado(a) que se foi? Não poderiam fazer isso usando proteção adequada igual aos profissionais? Alguma ala deveria ser criada para isso. 

Não sou expert, mas acho que um caixão fechado com apenas o rosto visível aos familiares num espaço adequado para tal despedida não deve ter potencial de contaminação muito alto. Posso estar enganado sobre os riscos, mas não podemos negligenciar a dor que advém de uma despedida sem corpo logo depois do transtorno que é uma contaminação e tratamento de COVID-19. Às vezes, a pessoa que se foi estava há dias afastada dos seus familiares. Obliterar esse último adeus é uma tortura.

Tirar o ritual do velório, mesmo que simplificado e restrito, é estender a dor dessa pandemia para um provável luto patológico de difícil tratamento e cura. Quem vai parece que ainda não foi ou que chegará logo mais. O ego recusa aceitar a ausência sem tal evidência. O corpo morto não vem à memória para dizer que não vai retornar com vida a qualquer hora. A negação do luto normalmente cede à memória que traz a constatação do corpo morto que os familiares viram e até sentiram por algumas horas. Sem tal constatação, a negação deverá se estender por muito tempo. O luto sem o tempo da realidade martelando por algumas horas que o ente está ali gélido e pálido, sem vida, exalta e prolonga a dor e a vivência do processo de luto. O direito ao luto na presença de um corpo deveria ser personalíssimo.

Jonas Freier Ribeiro - Psicólogo Clínico

trabalha na Prefeitura de Salto do Jacuí

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