SOBRE NOSSOS MAL-ENTENDIDOS
Um dia desses, estava indo a pé para o trabalho pela principal rua da cidade. Havia um movimento razoável de carros e pessoas nesse dia. Há uma sinaleira na esquina. Logo que ingresso nessa rua, entro em um estado de maior atenção. Preciso avaliar qual o melhor momento para atravessar a rua. Então preciso aproveitar a sinaleira fechada, os carros parados e um baixo número de carros vindo para essa fileira. Esse é o meu raciocínio para não atrapalhar o trânsito. Nesse dia fiz o de praxe. Olhei a sinaleira - sinal fechado! Baixo número de carros vindo para a fileira parada. É o momento de cruzar!
Ao pôr o pé no asfalto, ouço uma voz com um oi mais arrastado que os ois de costume. “Ooooooiii Jonassss”, ouvi alguém dizer. Por se tratar de alguém que conheço, seu timbre de voz está arquivado em minha memória. A resposta foi automática e espontânea: “Olá, Fulana!”. Enquanto ela ainda arrastava meu nome, olhei para trás e percebi a expressão incomodada em seu rosto. Ali estava um mal-entendido. A pessoa provavelmente achou que eu havia evitado ela, negado um oi ou um olhar e decidido desviar dela atravessando a rua. O fato é que sua expressão denotava um desgosto com o acontecido.
Não havia notado a pessoa. Não só ela, mas as outras também. Como disse, naquele exato momento, estava em minha matemática do trânsito. Meu raciocínio roubava minha atenção mais do que qualquer outra coisa ou pessoa. Mas não pude evitar tal mal-entendido. Na verdade, dificilmente podemos evitar. Podemos tentar esclarecer o ocorrido. Mesmo assim, não temos como garantir que a pessoa irá compreender. Às vezes o sentimento de que naquele momento a pessoa foi esnobada ou rejeitada não permite que uma explicação seja aceita. Seu desconforto está arraigado naquele lugar que não é lugar - o inconsciente.
Ali onde borbulha um Outro em nós. Um Outro desconhecido, mas que é bastante familiar, pois ele volta e meia aparece. Mesmo a contragosto do Eu, ele reclama sua autonomia. Então, quando esse Outro sujeito em nós se ofende com uma determinada situação, não há razões conscientes que o façam pensar diferente, pois nossas explicações costumam ser barradas e ficar no nível consciente. Dali para o inconsciente tem um caminho mais íngreme a ser percorrido. Não se chega somente com razões e explicações. É por isso que o trabalho em psicoterapia se dá com poucas explicações, pois estas não fazem o Outro necessariamente “mudar de ideia” sobre si.
Se não temos controle, então, sobre esse Outro em nós, que dirá sobre o Outro do outro. Quando estamos com alguém, podemos estar conversando sobre algo aparentemente racional apenas. No entanto, esse Outro está ali. E às vezes um assunto dito racional vai para uma via descontrolada justamente porque tocou naquilo que o Outro é. É por isso que estava com meu Eu racional focado em atravessar a rua, mas minha atitude de focar na minha tarefa diária fez um Outro sentir uma atitude esnobe. De certa forma, sempre esnobamos algo quando focamos em outro algo. O que nem sempre contabilizamos é que, para algum Outro, ser esnobado pode ser algo muito insuportável. “Ei, você não vai me notar?”
Jonas Freier Ribeiro - Especialista em Avaliação Psicológica e trabalha como psicólogo clínico na Prefeitura Municipal de Salto do Jacuí.