A tragédia que envolveu o menino Théo Ricardo Ferreira Felber, de cinco anos, morto pelo pai ao ser arremessado de uma ponte em São Gabriel, na Fronteira Oeste, escancarou uma realidade alarmante no Rio Grande do Sul: a maior parte das crianças assassinadas no Estado na última década foi morta dentro de casa, e muitas vezes por quem deveria protegê-las — os próprios pais.
Levantamento do jornal Zero Hora mapeou 153 casos de crianças de até 12 anos mortas entre 2014 e 2024. Do total, pelo menos 70 foram vítimas dos próprios pais. As mães foram responsáveis por 41 crimes, os pais por 18, e em 11 casos ambos os genitores estiveram envolvidos. A conta aumenta ao considerar padrastos e madrastas (19 casos) e outros familiares (nove).
Além do perfil dos agressores, chama atenção o local onde a violência ocorre: das 153 crianças mortas, 111 perderam a vida dentro de casa. Em 2024, 70% dos homicídios infantis ocorreram em contextos de violência familiar, um salto significativo em relação a anos anteriores, quando esse tipo de crime representava cerca de 40% dos casos.
— A violência contra crianças e adolescentes dentro das famílias é um fenômeno complexo e muitas vezes silencioso. A criança não compreende que está sendo vítima, o que aprofunda o sofrimento psíquico — afirma o juiz Fabio Vieira Heerdt, do 2º Juizado da Infância e Juventude de Porto Alegre.
O estudo também aponta que os mais vulneráveis são os mais novos: 92 vítimas tinham até cinco anos de idade, e 50 eram bebês com menos de dois anos. Entre os casos que chocaram o Estado está o da menina Miguel, de seis anos, morta em Tramandaí após ser torturada pela mãe e pela madrasta.
A promotora de Justiça Cristiane Corrales coordena o Projeto Mãos Dadas, que busca fortalecer a rede de proteção à infância em diversas regiões do Estado. Ela defende que é urgente capacitar profissionais, ampliar a vigilância e intervir com medidas protetivas quando necessário.
— Muitos pais vêm de famílias violentas e reproduzem comportamentos nocivos. Precisamos trabalhar com educação parental, identificar riscos e agir preventivamente — explica Corrales.
Apesar da queda no número de homicídios dolosos infantis, conforme dados da Secretaria de Segurança Pública do RS — foram 27 em 2015 e nove em 2024 — o número total de mortes violentas de crianças continua preocupante, especialmente quando envolve maus-tratos e tortura.
Porto Alegre lidera o ranking de municípios com mais casos, seguida por Alvorada, Canoas, Caxias do Sul, Novo Hamburgo, Pelotas, Gravataí, Santa Maria, Lajeado e Passo Fundo.
A violência dentro de casa, muitas vezes relacionada a conflitos conjugais, disputas por guarda ou uso de substâncias, exige uma resposta articulada entre segurança pública, saúde mental, assistência social e educação. Medidas como a Lei Henry Borel, que prevê o afastamento do agressor e restrições de contato, têm sido apontadas como ferramentas importantes para evitar tragédias.
Para a promotora Erica Veras, é necessário que a violência intrafamiliar também seja abordada nas escolas:
— Muitas crianças nem sabem que apanhar é errado. Precisamos educá-las para que reconheçam os sinais de abuso e tenham onde buscar ajuda.
Enquanto isso, o Estado continua sendo marcado por histórias como a de Théo, Lorenzo, Miguel e Anthony — vítimas de um ambiente que deveria ser sinônimo de acolhimento e amor, mas que se transformou em cenário de dor e morte.
Com informações: Jornalista Fernando Kopper