Sufocado por uma combinação incomum de seca, calor extremo e fumaça de queimadas generalizadas, o Brasil enfrenta uma grave crise de qualidade do ar. O cenário é igualmente preocupante quando se trata da capacidade do país de monitorar adequadamente os níveis de poluição e reagir de forma eficaz. Especialistas alertam que municípios, estados e o governo federal estão muito aquém do ideal em três etapas fundamentais: adequar os parâmetros de qualidade do ar aos padrões internacionais, monitorar a qualidade em todas as regiões habitadas e implementar ações padronizadas para proteger a população.
Segundo os padrões da Organização Mundial da Saúde (OMS), a qualidade do ar é avaliada em uma escala numérica, onde zero representa uma condição muito boa e valores acima de 200 indicam uma situação considerada péssima. Na tarde desta quinta-feira (12), São Paulo registrou um índice de qualidade do ar de 111, classificado como "ruim", de acordo com a plataforma suíça IQAir. Esse índice colocou a capital paulista como a 11ª cidade com o pior ar monitorado no mundo. Isso significa que os moradores de São Paulo inalaram entre 50 e 75 miligramas de material particulado de 2,5 micrômetros por metro cúbico de ar ao longo de 24 horas. Esse tipo de material particulado, devido ao seu tamanho diminuto, pode ser absorvido pelo organismo e causar sérios danos à saúde, especialmente problemas respiratórios e cardíacos.
Contudo, os padrões adotados no Brasil são menos rigorosos que os internacionais. Aqui, a concentração de poluentes só atinge o primeiro nível crítico, o de "atenção", ao alcançar 125. Nesse nível, a situação é considerada péssima, e a população pode começar a apresentar sintomas respiratórios e cardiovasculares mais graves, especialmente em grupos vulneráveis, como idosos e crianças. Já em países como Reino Unido, França e Espanha, medidas de contenção e restrição de atividades são tomadas muito antes, quando o índice atinge valores significativamente menores. Em situações como a de São Paulo, esses países adotariam restrições ao tráfego de veículos, suspensões de aulas e atividades produtivas para evitar a exposição ao ar contaminado.
No Brasil, porém, a adoção de protocolos emergenciais ainda é rara e falta padronização. “Em países europeus, com um índice como o de São Paulo, medidas preventivas já estariam em vigor”, alerta Evangelina Araújo, diretora do Instituto Ar. Ela ressalta que em países como Reino Unido e França, quando o índice atinge valores mais baixos, já há recomendações sobre cuidados a serem tomados pela população, amplamente divulgados pelos canais oficiais e grandes veículos de comunicação. No Brasil, esse tipo de comunicação praticamente não existe. “O mais absurdo é que aqui sequer comunicaram a população. Não o fazem porque não querem assumir que a situação é crítica”, diz Evangelina. O patologista Paulo Saldiva, estudioso dos impactos da poluição na saúde há mais de 45 anos, reforça que o Brasil deveria estar adotando medidas urgentes para proteger as crianças e os idosos, que são os grupos mais vulneráveis. “Crianças deveriam estar usando máscaras para ir à escola”, recomenda Saldiva.
Saldiva destaca ainda que nunca viu uma combinação tão severa de seca, calor e poluição em São Paulo. Segundo ele, essa é a "tempestade perfeita". Embora a cidade conte com uma rede eficiente de monitoramento operada pela Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb), outras regiões do país estão em situação ainda mais preocupante, principalmente no Norte e Centro-Oeste, onde ocorrem as queimadas mais intensas e o monitoramento do ar é praticamente inexistente.
De acordo com um relatório de 2023 do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, 11 estados brasileiros não possuem qualquer tipo de monitoramento da qualidade do ar: Alagoas, Amapá, Amazonas, Goiás, Paraíba, Piauí, Rio Grande do Norte, Rondônia, Roraima, Sergipe e Tocantins. A reportagem entrou em contato com representantes desses estados, mas não obteve resposta até a publicação deste texto. Atualmente, o Brasil conta com 245 estações de monitoramento da qualidade do ar, a maioria delas concentrada nas regiões Sudeste e Sul. Segundo David Tsai, gerente de projetos do Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema), seriam necessárias pelo menos mais 46 estações para cobrir as regiões deficitárias. "Prefeitos e governadores estão no escuro, sem parâmetros adequados para reagir à crise", afirma Tsai, ressaltando que sem dados precisos não há como tomar decisões corretas para proteger a população.
Mesmo que os dados de qualidade do ar fossem disponíveis, Evangelina Araújo afirma que muitos gestores estaduais têm relutância em adotar restrições às atividades econômicas, o que dificulta a resposta à crise. Ela aponta os gestores estaduais como os principais opositores à atualização dos parâmetros de qualidade do ar, uma medida que, segundo ela, traria contingências necessárias, mas politicamente impopulares.
O governo federal reconhece o atraso no setor e promete que novas medidas estão em andamento para tentar reverter o quadro. Em julho deste ano, o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) aprovou a atualização dos parâmetros de qualidade do ar, que se tornará mais rigorosa a partir de 2025. Estados que dependem de licenciamento ambiental para atividades industriais serão forçados a melhorar suas condições de qualidade do ar para poderem continuar recebendo novos investimentos. Além disso, o governo Lula promete entregar, até o início de 2025, um guia técnico nacional para o monitoramento da qualidade do ar, revisando os parâmetros dos níveis críticos. Também está previsto o investimento de R$ 120 milhões para a instalação de 11 novas estações de medição em estados que ainda não possuem essa tecnologia.
Embora as medidas em longo prazo pareçam promissoras, especialistas como David Tsai alertam que o Brasil precisa de ações mais imediatas para lidar com a crise que já está afetando milhões de brasileiros. "Não podemos esperar até 2025 para tomar providências", afirma Tsai. A falta de monitoramento e de protocolos emergenciais expõe grande parte da população ao risco, especialmente nas regiões mais afetadas pelas queimadas. Diante desse cenário, é essencial que o Brasil invista rapidamente em infraestrutura e adote medidas integradas para evitar um colapso na saúde pública, com efeitos devastadores a médio e longo prazo.