
A cidade de Cruz Alta foi palco, na última semana, de uma audiência pública de grande relevância para o setor agropecuário gaúcho, com foco direto na crise do crédito rural, no endividamento dos produtores e nas práticas adotadas pelas instituições financeiras. O encontro ocorreu no Sindicato Rural de Cruz Alta e foi organizado pelo presidente da entidade, Moacir Medeiros, reunindo lideranças do agro, representantes de associações de produtores e integrantes do Tribunal de Contas da União (TCU). A repórter Jô Prates acompanhou toda a audiência, representando a Rádio Cidade FM 98,3 e o Jornal Tribuna das Cidades.
A audiência teve como principal objetivo ouvir, de forma direta, produtores rurais e entidades representativas sobre os fatores que levaram ao atual cenário de endividamento no campo, especialmente após sucessivas frustrações de safra provocadas por eventos climáticos extremos no Rio Grande do Sul. Além disso, o encontro serviu para subsidiar uma auditoria nacional do crédito rural, já autorizada pelo TCU, que busca apurar possíveis irregularidades, abusos e desvirtuamentos nas operações financeiras destinadas ao setor.
Estiveram presentes o presidente da APROSOJA, Ireneu Orth; o presidente da Associação de Produtores e Empresários Rurais (APER), Arlei Romero; o primeiro vice-presidente da APER, Rafael Hermann; e o representante do Tribunal de Contas da União, Luiz Afonso Gomes Vieira, além de produtores rurais de diversas regiões, lideranças sindicais e representantes de entidades do agro.
Durante a audiência, um dos pontos mais debatidos foi o impacto do seguro agrícola no endividamento dos produtores. Em depoimentos contundentes, lideranças do setor destacaram que, nos últimos cinco anos, o custo do seguro chegou a representar cerca de 25 sacas de soja por hectare, valor que, segundo os relatos, equivale ao lucro de aproximadamente três safras consideradas normais. A avaliação apresentada foi de que, apesar de ser amplamente divulgado como uma ferramenta de proteção, o seguro agrícola, na prática, não tem garantido retorno proporcional aos custos pagos pela maioria dos produtores, contribuindo de forma significativa para o agravamento das dívidas.
Outro tema central foi a condução das políticas públicas de crédito rural pelas instituições financeiras. De acordo com a APER, práticas recorrentes como a negativa do direito à prorrogação de dívidas após frustração de safra, a indução dos produtores a contratar novas linhas de crédito com juros mais elevados e a chamada “operação mata-mata” — quando um financiamento é usado para quitar outro — têm sido comuns em diferentes regiões do estado e do país. Essas práticas, segundo os representantes, ferem o Manual de Crédito Rural (MCR) e colocam todo o peso do endividamento sobre o produtor, considerado o elo mais frágil da cadeia agropecuária.
O presidente da APER, Arlei Romero, destacou que a audiência em Cruz Alta integra um processo mais amplo de auditoria, solicitado ao TCU a partir de denúncia protocolada no Congresso Nacional. Segundo ele, o objetivo é mudar de forma estrutural a relação entre produtores e sistema financeiro, garantindo respeito, transparência e legalidade nas operações de crédito. Romero também alertou os agricultores para que não assinem contratos sem total clareza das condições e busquem orientação junto a sindicatos e associações antes de qualquer renegociação.
Já o presidente da APROSOJA, Ireneu Orth, traçou um panorama preocupante da situação econômica do campo, citando exemplos de diferentes cadeias produtivas. Ele destacou que culturas como trigo, arroz e leite vêm sendo comercializadas abaixo do custo de produção, o que faz com que, paradoxalmente, quanto mais o produtor trabalha e produz, maior seja o prejuízo acumulado. Orth também chamou atenção para a importação de leite em pó como um dos principais fatores de pressão sobre os preços pagos ao produtor, agravando ainda mais a crise no setor.
Representando o Tribunal de Contas da União, Luiz Afonso Gomes Vieira explicou que a presença do TCU em Cruz Alta faz parte da interiorização da auditoria do crédito rural, com o objetivo de ouvir os produtores “olho no olho” e coletar documentos que comprovem eventuais abusos. Ele ressaltou que o trabalho está sob a relatoria do ministro Augusto Nardes e que a auditoria deverá analisar, entre outros pontos, a cobrança de juros abusivos e o desvirtuamento de linhas de crédito subsidiadas. O prazo estimado para a conclusão do trabalho técnico é de cerca de 180 dias.
O primeiro vice-presidente da APER, Rafael Hermann, reforçou que muitos produtores têm contratos com juros mensais elevados, inclusive em operações que substituíram créditos subsidiados, o que transformou o endividamento em uma “bola de neve”. Segundo ele, a orientação às famílias rurais é que encaminhem toda a documentação às entidades representativas e, nos casos mais graves, busquem também a via judicial para evitar a perda de patrimônio enquanto a auditoria segue em andamento.
Encerrando a audiência, o presidente do Sindicato Rural de Cruz Alta, Moacir Medeiros, avaliou o encontro como um momento histórico para a região. Ele destacou a grande participação dos produtores e a importância de levar as demandas do campo diretamente a Brasília. Medeiros reforçou que o endividamento não é resultado de má gestão dos agricultores, mas de uma combinação de fatores climáticos, falta de políticas efetivas e dificuldades no acesso a crédito justo. Segundo ele, a expectativa é que o trabalho do TCU represente um marco para a construção de soluções concretas que permitam ao produtor continuar produzindo, gerando alimentos e sustentando a economia regional.
A audiência pública em Cruz Alta deixou claro que a crise do crédito rural não é um problema isolado do Rio Grande do Sul, mas uma realidade que atinge diferentes regiões do Brasil. Ao mesmo tempo, o encontro reforçou a mobilização do setor agropecuário e a esperança de que, a partir das denúncias formalizadas e da auditoria em andamento, haja mudanças efetivas na política de crédito rural, trazendo mais equilíbrio, justiça e segurança para quem vive e trabalha no campo.